quarta-feira, 27 de agosto de 2014

As Laurencianas

Na zona central do cratão norte-americano, no sudeste do Canada, há um rio que se destaca. O São Lourenço que, nos seus mil e duzentos quilómetros, possibilita a ligação marítima entre os Grandes Lagos e o Atlântico norte. Ganha vida no Lago Ontário e desagua na foz que lhe dá nome. Entre um ponto e outro, Montréal e Québec City. Pelo que nos interessa acima de tudo, o ciclismo, sabemos que é nestas cidades onde se correm duas das mais recentes provas do calendário World Tour, já perto do fim da temporada: Os Grandes Prémios Ciclistas do Québec e Montréal ou Les Grandes Prix Cyclistes de Québec et de Montréal em francês.

O facto de serem utilizadas pelos nomes grandes - aqueles que não estão na Vuelta - maioritariamente como preparação para os Campeonatos do Mundo não altera em nada a sua beleza e unicidade. E enquanto se especula e conspira para excluir do World Tour corridas como a Volta a Pequim e a clássica de Hamburgo, ou Vattenfall Cyclassics, posso dizer, com toda a certeza, que As Canadianas vieram para ficar. Não pela posição favorável que ocupam no calendário ou pela capacidade logística e financeira de organizadores e patrocinadores (são estes o Governo e Groupe Serdy, uma cadeia de televisão com canais dedicados ao turismo e gastronomia), mas pelo grande aumento de espectadores e, de forma geral, interesse pelas duas corridas ao longo dos anos. É que em quatro edições, os Grandes Prémios do Québec e Montréal ofereceram o que Hamburgo não conseguiu em dezasseis e Pequim não ambiciona sequer: um bom percurso, movimentações de corrida de início a fim e, não menos importante, paisagem. Da costa para o interior, o aumento gradual no relevo coberto de folhas de Acer convida ao ciclismo como se o Canadá fosse, em toda a sua extensão, a capital ultramarina da modalidade. Sempre vi a província de Québec como o lugar onde a arquitectura e costumes Europeus se fundem com a inovação e ares Americanos. O resultado é um país de cultura e de gente culta, não tivesse a divisa inscrita as palavras ''Je me souviens'', ou Eu lembro.

A foz e as ilhas do São Lourenço. Ville de Québec no canto inferior esquerdo.


Os duzentos quilómetros da Québécoise dividem-se em onze voltas a um circuito de dezoito mil metros, com partida e chegada na rua Grande-Alée Ouest, quatro côtes categorizadas e um desnível total acumulado de 2310m. No ano passado, Robert Gesink venceu, imponente. Tiago Machado conseguiu ser primeiro na classificação da 'montanha' e Rui Costa, ao terminar em quinto, mostrava que estava em forma na aproximação aos Campeonatos do Mundo de Florença. Mais a sul e dois dias depois, os ciclistas medem forças nas e com as colinas de Montréal: são dezassete voltas de doze quilómetros, quatro mil metros a subir - menos quinhentos que a Liège-Bastogne-Liège - e uma cidade parada para ver ciclismo. Partida e chegada na Avenue du Parc, uma rampa a quatro por cento de inclinação e clímax do percurso logo depois, a Côte de Camillien-Houde - dois quilómetros a 8%. Em 2013 Peter Sagan foi rei e senhor.

O ciclismo não é estrangeiro no Canadá. Em 1974, Montréal acolheu os Campeonatos do Mundo e os cerca de 150.000 espectadores na estrada viram Eddy Merckx vencer a camisola arco-íris e a Tripla Coroa do Ciclismo. Antes de Merckx, ninguém havia conseguido tal feito. Depois, só Stephen Roche em '87. A corrida começou quando Bernard Thévenet se lançou numa fuga de quase cem quilómetros que terminou na última subida ao Mont-Royal, ou côte de Camillien-Houde. Atrás, um grupo com Freddy Maertens, Herman Vanspringel e Merckx pela Bélgica, os colegas de equipa Jean-Pierre Danguillaume, Mariano Martinez e Raymond Poulidor por França e Francesco Moser, Giovanni Battaglin e Giovanni Santambrogio a representar Itália. Por fim, já na última subida, Merckx aumentou o ritmo e juntamente com Poulidor, Santambrogio e Martinez, rapidamente passou por Thévenet. A duzentos e cinquenta metros do topo, Poulidor atacou, ganhando facilmente seis bicicletas ao grupo, até que Merckx, já na descida, veloz, conseguiu juntar-se ao Francês. A partir dali, com a meta a um par de quilómetros, seria entre os dois que se disputaria a vitória, desta feita ao sprint. O de Brabant, Bélgica, lançou-se a 200 metros da chegada. No fim, Poulidor disse: ''Quando ele [Merckx] se juntou a mim, soube que tudo estava perdido. Merckx é Merckx. Não tinha qualquer hipótese.''  Desde então, o Canadá faz parte da história do ciclismo.

Este ano, deverão estar presentes, entre outros, Rui Costa, Vincenzo Nibali, Bauke Mollema, Michał Kwiatkowski, Greg Van Avarmaet, Tom-Jelte Slagter, Simon Gerrans e Sylvain Chavanel, todos estes com uma boa chance de vitória em ambas as corridas. Trepadores e velocistas, puncheurs e roladores que fazem destas duas provas modelos padrão da diversidade, dentro do possível e razoável.